terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A PALAVRA DO CARDEAL

FOCUS 484

As declarações do Cardeal-Patriarca de Lisboa sobre os muçulmanos provocaram crítica, estranheza e indignação. No meio de um episcopado clericalista, retrógrado, provinciano, primário e saudosista do poder perdido, D. José Policarpo distinguia-se pela sofisticação intelectual e por uma atitude aberta e correcta. Graças a isso, criou uma imagem liberal e moderna. Surpreendentemente, nos últimos anos, vem, pouco a pouco, negando a justiça dessa imagem. A sua intervenção na última campanha do referendo da IGV foi inaceitável num Estado laico e numa sociedade democrática. 

Houve, além disso, outras coisas que disse (sobre a educação sexual, por exemplo) que mostraram ser afinal excessiva essa sua fama liberal. A questão é sempre a mesma: o Papa e a maioria dos bispos e padres não conseguem perceber que as suas concepções dizem respeito apenas aos seus fiéis. Quem o não é, não tem que os atender. E, sobretudo, o Estado laico não tem que consagrar nas suas leis, que são gerais, princípios que derivam de uma doutrina religiosa particular (qualquer que seja o seu número de seguidores).

As declarações do Patriarca de Lisboa feitas agora sobre os muçulmanos e sobre o eventual casamento de alguns deles com portuguesas evidenciam uma insensatez, uma arrogância e uma desfaçatez que espantam. E mostram que o Cardeal não praticou o preceito evangelho que aconselha a não ver o que está no olho do próximo ignorando o que está no seu próprio olho. De facto, tudo o que ele afirmou sobre os muçulmanos pode também ser afirmado com verdade sobre os católicos. Quando, por exemplo, diz que uma portuguesa que case com um muçulmano arranja um monte de sarilhos, podia também dizer que um português não católico que case com uma portuguesa católica que respeite a moral sexual da sua Igreja mete-se igualmente num enorme sarilho. 

Basta pensarmos no que acontecerá a esse incauto no que respeita ao uso dos contraceptivos e nas consequências que daí advém para se não ter dúvidas sobre a grandeza do sarilho em que se mete. Isso só não acontece mais porque mesmo a esmagadora maioria dos que se proclamam católicos estão-se nas tintas para o que a Igreja diz nestas e noutras matérias.

E quando D. José Policarpo declara que é difícil dialogar com os adeptos de Maomé porque a “ verdade deles é única e toda”, podia acrescentar: assim é como os muçulmanos, assim é com os católicos. É esse, aliás, o drama das religiões: cada uma julga-se detentora da verdade única e toda. Por isso, geram e praticam tanto fanatismo, ódio e intolerância. Um exemplo: a Igreja Católica nunca abandonou, mesmo no diálogo ecuménico com as outras igrejas cristãs, a posição de única religião verdadeira, só ela representante do Deus verdadeiro e depositária da doutrina verdadeira. Ao contrário disso chama relativismo religioso e condena-o. Por isso, esse diálogo é tão pouco frutuoso quanto ao grande objectivo da unidade.

Ao dizer o que disse, D. José Policarpo mostrou não saber fazer um exame de consciência exigente sobre a sua Igreja. Prestou-lhe um mau serviço e não amou suficientemente o próximo. Foi um mau cristão. Mas talvez tenha sido, afinal, um bom católico….

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